noticias Publicado em 4 de abril de 2016

Quando ser saudável não é saudável

Esses dias eu descobri uma dessas novas dietas-desafio. Eu sou nutricionista, e perdão tribunal do mundo… Eu não conhecia essa. Era uma proposta de alimentação muito restritiva e que me parece insustentável de seguir pelo resto da vida. É um programa de mudança radical na alimentação que promete um organismo limpo, livre de “inflamação” e toxinas. Vocês podem buscar. Não vou explicar em minúcias porque não estou aqui para promover o programa alimentar “clean” dos outros.

Isso me fez pensar em algumas coisas. Uma delas é o quanto se fala em “saúde” atualmente. Eu diria que a Era da aeróbica, das fitas VHS da Jane Fonda, das refeições congeladas diet, chás e shakes de emagrecimento está ficando para trás num passado nebuloso.

Nas últimas décadas do século XX, o sofrimento primordial de milhões de mulheres era manter-se magra. Mas valia tudo. Cigarro, Coca Diet, “boletas” para emagrecer, volumes ridículos de comida. Atualmente, não vale tudo. Somos a “geração saúde” e nunca soubemos tanto sobre nutrição, dietas, alimentos que “fazem mal”, são “venenos” e deixam a população irremediavelmente doente por causa do seu amplo consumo. Nunca falou-se TANTO em alimentação saudável, no entanto, nunca tivemos números tão expressivos de obesidade ao redor do globo. Irônico.

Enfim… Ser magra é out. Esbanjar saúde é in.

Ocorreu a troca do “ser macérrima” por “ter saúde”, mas isso não significa que não exista oportunismo mercadológico fazendo lavagem cerebral nas pessoas. Antes bastava fazer aeróbica e comer refeições “diet” (e vomitar, tomar anfetaminas, fumar 4 carteiras de cigarro por dia… mas disso a gente não fala). Atualmente existe um tremendo terrorismo nutricional, alegações de que determinados grupos de alimentos são “inflamatórios”, causam câncer, causam todos os males da humanidade… Fujam.

Substâncias e práticas que supostamente limpam e curam o organismo estão sendo proclamadas como SAUDÁVEIS, como a dieta cetogênica (“paleo”), produtos DETOX, papos estranhos holísticos e jejuns. Se anteriormente tínhamos um forte encorajamento do desenvolvimento da anorexia/bulimia, neste começo de século fomos “presenteados” com mais dois novos tipos de transtornos: ortorexia e vigorexia.

Ortorexia é uma obsessão por “comer certo”. Comer “limpo”. É um transtorno alimentar que se relaciona pouco com a imagem corporal, mas é um dos mais torturantes e estressantes que existem. Não chega a ser hipocondria, mas é uma extravagância preventiva. A pessoa tem uma lista quilométrica de alimentos ‘proibidos’, lê rótulos obsessivamente, perde a vida social e fica com severa deficiência de nutrientes. A vigorexia cresce em ritmo recorde porque as pessoas estão confundindo “ter saúde” com ter baixo índice de gordura corporal.

Mas a gordura corporal não é uma inimiga. Ela está presente no nosso corpo, faz parte da nossa fisiologia e existe por diversos motivos (a gordura protege o corpo contra choques mecânicos, regula a temperatura corporal, é veículo de absorção das vitaminas A, D, E e K. E recentemente descobriu-se que o tecido adiposo tem funções endócrinas específicas e que até participa da regulação da fome e da saciedade.)

A indústria das DIETAS (kits, comidas congeladas, chás, shakes) deu lugar à Indústria Fitness e dos alimentos “””saudáveis””””… A coisa toda foi repaginada, mas seguimos sendo explorados por uma indústria que simplesmente se adaptou para nos vender um novo discurso: quem come “certo” é um vencedor e tem sucesso. Quem não se controla e “jaca” (como se diz no Brasil) é um derrotado, que não tem vergonha na cara. Ser gordo? Reprovação social plena!

Mas até que ponto essas práticas ‘saudáveis’ são verdadeiramente saudáveis? Alimentação e atividade física compõem uma vida sadia, é evidente. Mas não é SÓ isso. Será que estamos verdadeiramente vivendo de maneira saudável se seguirmos todas as regras higienistas da manutenção do corpo, mas submetidos a um imenso estresse mental?

Almoçar arroz integral, uma carne magra grelhada (ou uma substituição se você for vegetariano), salada e um copo d’água é uma opção saudável. Comer bolo floresta negra e brigadeiro em uma festa de aniversário TAMBÉM é saudável. O brigadeiro não é FUNCIONAL nem utilitário. No entanto, é afetivamente, mentalmente, socialmente e culturalmente saudável que as duas realidades se permeiem. A gente come de tudo um pouco. É normal.

Um tremendo esforço para manter uma alimentação SAUDÁVEL, mesmo que seja saudável, não é saudável. Da mesma maneira que nós não aceitamos mais a dieta dos pontos, as normas dos Vigilantes do Peso e os kits de shakes emagrecedores, chás e refeições ‘light’ congeladas… Nós também não aceitamos um referencial de beleza estupidamente magro. Acabaram-se os dias do “Heroin Chic”.

O advento da internet tem forte papel nessa mudança de mentalidade. Atualmente temos mídias alternativas (Blogs, Sites, canais no Youtube) que transmitem mensagens que não são veiculadas pelos meios de comunicação da mídia tradicional.

A mulher passou a perceber que ela não precisa emagrecer para frequentar a praia. Emagrecer para casar. Emagrecer porque é o seu dever existencial (porque mulheres devem ser bonitas, portanto magras).

Começou o movimento de aceitação. Porque tudo o que é muito represado, eventualmente extravasa. Porque quanto maior é a altura, maior é a queda. E se frequentamos as nossas aulas de história direitinho, já sabemos que todos os Impérios eventualmente acabam. Nós NÃO ENGOLIMOS mais a magreza surreal que nos foi socada goela abaixo ao longo de décadas.

Ok, mas e o homem? Ele nunca precisou se preocupar muito com isso porque ele é imagem e semelhança de Deus. É até bonito que ele fique grisalho, careca, barrigudinho… “quanto mais antiga a safra, melhor o vinho”, certo?

Entretanto,as coisas estão ficando apertadas para eles também. A febre fitness demanda corpos cada vez mais definidos, grandes, musculosos… E para sustentar as demonstrações corporais de potência e virilidade, MUITOS suplementos precisam ser consumidos e MUITO ferro precisa ser puxado. Foco. Força. Fé. E o seu dinheiro aplicado em potes cintilantes de Whey Protein.

~~Apenas uma curiosidade:

Quando o leite é entregue à indústria de laticínios, ele é aproveitado de diversas maneiras: leite integral, semidesnatado, desnatado. Manteiga, ricota, iogurte, creme de leite. TUDO é devidamente extraído e transformado para ser comercializado. Anteriormente, havia uma coisa que sobrava: o SORO do leite. E ele era sumariamente descartado. Eis a sacada de Midas: mas por que não LUCRAR com o descarte? Basta começar a vender a proteína isolada do soro do leite alegando ser o alimento mais completo do mundo. Tcha-nã: você comprou o lixo da indústria por quatrocentos reais.~~

Só que a situação não é TÃO ruim para os homens, já que eles podem conquistar aceitabilidade social e status através de dinheiro, poder, bens materiais, altas posições no mundo corporativo, intelectualidade… Há mais chances de ser reconhecido, certo?

Já as mulheres SÓ têm a beleza como moeda de valor. Então a manutenção dos atributos físicos é uma prática fundamental. É questão de sobrevivência e, com o movimento de aceitação, os limites da denifição de “beleza” se tornaram um pouco mais amplos. Um pouco. O ideal de beleza se encontra, de fato, um pouco menos restrito

Nós clamamos para que aceitassem os nossos diferentes corpos, pesos, alturas, cores, cabelos… E as indústrias da moda, dos cosméticos, da estética, da vida Fitness cederam… mas também não permitem que a coisa vá TÃO longe.

Temos top models Plus Size? Sim, nós temos! Mas é um corpo Plus Size “tolerável”. A gorda aceitável veste 44. Ou 46 (o que é muito avanço, se fizermos um comparativo com a ditadura do 34/36). A gorda aceitável também tem cintura fina. Bem fina. Ela é CAUCASIANA. Ela tem corpo de ampulheta e All the right junk in all the right places(Meghan Trainor – “All About That Bass”). E é primordial que a gorda aceitável declare, sempre, que ela é tonificada, come “certo” e faz bastante atividade física.

Aí que o tsunami da SAÚDE mescla com a (relativa) democratização dos corpos: “Nós permitimos que você não vista 36. Mas você não pode ser uma maldita gorda sedentária e sem vergonha. Porque nós temos uma genuína, grande, sincera preocupação com a sua SAÚDE… Então compre nossas marmitas fit, nossas receitas com Whey, nossos sucos detox, nosso programa de dieta Paleo, nossa linha sem glúten, nossos pudins 0% lactose!”

Nós não somos a geração saúde. Nós não estamos cultivando o bem estar. Nós não temos corpos livres. Nós não somos livres… Tudo isso é apenas uma NOVA maneira de mercantilizar a nossa vida. É preciso estar atentas para as novas armadilhas e lutar por uma liberdade que em nada nos limite.


Paola Altheia é nutricionista formada pela UFPR e criadora do projeto Não Sou Exposição.

 

Arte: Kelly Bastow, aka Moosekleenex.

Sobre “Think Olga”: A OLGA é um projeto feminista criado em abril de 2013 cuja missão é empoderar mulheres por meio da informação.

Link para acesso: http://thinkolga.com/2016/03/30/quando-ser-saudavel-nao-e-saudavel/

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