artigos Publicado em 29 de maio de 2016
Ódio ao feminino
Ódio ao feminino – A misoginia está na base da violência contra a mulher
04/09/2011 – 02:00
Eliane Gonçalves e Lenise Santana Borges
Especial para O POPULAR
Olhar as estatísticas sobre a violência em Goiás remete imediatamente ao efeito que dados produzidos em pesquisas têm sobre nós, dando a entender que, sem eles, o problema não existe. A ciência nos coloca, assim, diante de um fato social e legitima sua existência. Diante dos “fatos”, irrompem as análises. E cá estamos nós para apresentar uma visão, particular e situada, do problema da violência contra as mulheres, violência esta que não é recente, difícil de traçar suas origens e de ser explicada, que varia com os contextos e que requer muito trabalho para ser extirpada.
Pensamos que a violência contra as mulheres está intimamente associada a um sentimento de ódio ao feminino – misoginia – que, como outras aversões, tem a capacidade de se materializar em crimes de diversas naturezas – femicídios, agressões verbais, difamação, desqualificação psicológica, assédio moral e sexual, torturas corporais, legislações restritivas, etc. Falamos de misoginia quando empregamos metáforas como “a mulher é o diabo, a tentação” ou “a mulher é natureza”, porque cada uma dessas expressões coloca a mulher como este “outro” indecifrável, indesejável, potencialmente ameaçador, que precisa e deve ser domado.
Historicamente falando, a misoginia serviu para excluir as mulheres do estatuto de indivíduos e de cidadãs, valores tão caros à modernidade. Sem o direito à cidadania, as mulheres tiveram de lutar por direitos econômicos, políticos e sociais. Do século 19 aos nossos dias, elas têm lutado pelo direito à educação, ao trabalho, à herança, ao voto e, mais tardiamente, após as “revoluções culturais” da segunda metade do século 20, por direitos humanos, como a autodeterminação como pessoas, o direito de decidir quanto ao próprio corpo e à sexualidade, noções essas fundamentais para o movimento feminista e que ainda encontram as mais severas oposições.
O mundo programado da desigualdade demora a assimilar cada novo sujeito que chega e reage a isso. No caso das mulheres, a reação advém não apenas dos homens, indivíduos concretos, mas de todo um conjunto fundado em valores materiais e simbólicos resultantes da “valência diferencial dos sexos” – termo cunhado pela antropóloga feminista francesa Françoise Heritier -, que significa que a mulher vale menos que o homem no todo social.
Assim sendo, todos somos socializados com este “molde mental” que tem efeitos na subjetividade de homens e de mulheres. Quando a situação das mulheres se modifica, ela afeta o conjunto das relações sociais, desestabilizando certezas prévias e deslocando posições de poder e prestígio; com isto, elas se tornam sujeitos de suas próprias biografias e sujeitas, também, aos riscos, o que inclui os diversos tipos de violências (inclusive o risco de cometerem, elas mesmas, atos de violência).
Outro aspecto sobre o qual vale a pena refletir é que a violência não ocorre em “surtos” eventualmente. Ela é nutrida, cultivada através de mecanismos mais ou menos sutis ou francamente explícitos de uma cultura da violência. Àquele “molde mental” da diferença/desigualdade vem se juntar o fetiche por armas, brincadeiras agressivas e disputas sangrentas. No caso dos homens, o efeito pode ser ainda mais agudo, pois culturalmente, na nossa sociedade, do modo como os garotos são iniciados nos códigos de masculinidade, ser homem equivale a ser violento.
Para as mulheres, a exaltação da culpa, do medo e da passividade mingua sua capacidade de responder adequadamente às violências a que são rotineiramente submetidas. Isso ajuda a entender, ao menos em parte, a recorrente atitude de algumas mulheres que retiram denúncias nas delegacias especializadas, minimizando os resultados da aplicação de leis de coibição da violência. Portanto, apesar do empenho do Estado em formular e implementar leis que combatam ações violentas e intolerantes – fundamentais, diga-se de passagem -, como é o caso da Lei Maria da Penha, faz-se necessário investir também na transformação das mentalidades e das práticas sociais.
A “Marcha das Vadias”, manifestação que atravessou o mundo e o Brasil, constitui um exemplo emblemático de resposta inteligente e bem-humorada das mulheres à acusação de que seriam as responsáveis por provocarem ações violentas. Como ação política organizada, ela desencadeia reações, promove debates e torna visível, tanto quanto os dados científicos das pesquisas, a realidade vivida pelas mulheres. Outra ideia fomentadora da violência contra a mulher circula na cultura como frases “ingênuas” que são repetidas de forma acrítica como o bordão “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Esse clichê se sustenta na crença de que o que acontece no âmbito privado/doméstico, especialmente na esfera das relações conjugais, diz respeito apenas às pessoas diretamente envolvidas.
A crença na passividade das mulheres, na impunidade dos homens e na inviolabilidade da família ajuda a alimentar o pacto de silêncio e o ciclo perverso da violência. Vivemos em uma época repleta de paradoxos. Se, por um lado, o mundo avança em defesa da justiça social, de gênero e erótica, um contingente enorme de pessoas ainda é proscrito em virtude do seu gênero ou de sua sexualidade, sejam elas gays, lésbicas, transgêneros, intersexos, pessoas solteiras, trabalhadores do sexo, ou mesmo mulheres heterossexuais cuja vida erótica e social não obedece a padrões tradicionais.
Pensamos que para mudar o molde mental que alimenta a violência contra as mulheres não há programa pronto de aplicação universal. Precisamos aprofundar nossas inquietações, perguntar mais, colocarmo-nos de uma perspectiva “de dentro”: o que é a violência para mim? Como e quando eu me torno intolerante e violento? Como as violências se manifestam na atualidade? De onde partem? Quem são os sujeitos envolvidos, que posições ocupam e que recursos possuem?
Longe de propor uma saída psicologizante e individualista para um problema que é eminentemente social, pensamos que tais perguntas podem ser pontos de partida para nos posicionarmos como sujeitos que têm um pertencimento nesse mundo presente, não um simples pertencimento a uma comunidade em geral, mas um pertencimento que nos confronta com nossas possibilidades e limites de reconhecermos a nós mesmos como sujeitos do que estamos fazendo, pensando e dizendo. Chamamos a isto de uma “ética do trabalho sobre si mesmo”, visando à produção de um novo ser, estratégia de resistência que é um processo e que nunca se completa inteiramente. O que se almeja é uma transformação que, tão logo alcançada, impulsiona outra, num incessante devir.
Visto assim, o combate à misoginia (chamem de sexismo, machismo se preferirem) e à violência torna-se um problema de todos, a ser combatida por todos, incansavelmente e, desde modo, nosso engajamento profundo nos impele a uma crítica permanente de nós mesmos e do mundo. Porque, como ensina Michel Foucault, existem momentos na vida em que “a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir”.
Eliane Gonçalves é cientista social e professora da Faculdade de Ciências Sociais da UFG.
Lenise S. Borges é psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da PUC/GO.
Ambas são cofundadoras do Grupo Transas do Corpo.
Para acesso: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/%C3%B3dio-ao-feminino-1.34966