noticias Publicado em 17 de março de 2011
A renovação do feminismo do Sul
Temos pouco contato com a realidade das mulheres nos outros países, em especial na Ásia e na África, mas a verdade é que a reivindicação de mais liberdade e condições igualitárias perpassa povos e credos e cresce junto com a ocupação cada vez maior do espaço público
por Camille Sarret
Na França, 2010 foi marcado pelas comemorações dos 40 anos do Movimento de Liberação das Mulheres (MLF) e a data serviu para rememorar as lutas e contribuições das mulheres do Sul à renovação do feminismo. Embora a tendência seja vitimizá-las, a atuação dessas mulheres contra a ordem estabelecida e as desigualdades engendradas por certas tradições é contundente.
Em Ruanda, por exemplo, as mulheres são maioria no Parlamento; é o único país do mundo em que isso ocorre e, no entanto, não se sabe muito a respeito. Desde as eleições gerais de 2008, elas representam 56,3% dos deputados: um recorde invejável até mesmo aos países escandinavos, campeões da paridade política na Europa. As ruandesas obtiveram o direito ao voto apenas em 1961, quando o país conquistou a independência. Em 1965, a primeira eleita assumiu seu posto no Parlamento, mas até os anos 1990 as mulheres estiveram praticamente ausentes do mundo político. Foi o genocídio dos Tutsi em 1994 que modificou esse cenário. “Quando muitos homens morreram ou ficaram incapazes de agir, as mulheres assumiram responsabilidades e mostraram que podiam estar à altura”, relembra Immaculée Ingabire, coordenadora da Coalização Nacional Contra a Violência Contra a Mulher. “Ainda que massivamente violadas, foram as ruandesas que tiraram o país do caos. Isso enfraqueceu o machismo tradicional”, acrescenta ela.
Ao longo do período pós-genocídio, as mulheres passaram a comandar quase um terço dos lares, ocuparam empregos antes reservados aos homens (em particular nos setores da construção civil e da mecânica), e aderiram massivamente aos partidos políticos. Participaram da elaboração da Constituição de 2001 e conseguiram inscrever nela um sistema de cotas que reserva às mulheres 30% dos postos em todos os órgãos decisórios, assim como o direito à herança. Exigiram também a criação de um Ministério de Gênero e da Condição Feminina e foram bem-sucedidas na implementação de Conselhos nacionais femininos, que constituem um exemplo de representação das mulheres em todos as esferas de poder, desde o bairro até o nível mais alto da nação. No governo, os Ministérios da Indústria, da Agricultura, das Relações Internacionais e da Energia estão a cargo de mulheres.
Trabalho precarizado
As dificuldades, contudo, persistem. Segundo um relatório oficial, “74% dos secretários-gerais dos Ministérios são homens, assim como 81% dos diretores e 67% dos funcionários. As mulheres predominam, sobretudo, nos cargos de assistência administrativa e secretariado”. Do mesmo modo, na iniciativa privada, “as mulheres permanecem majoritárias nas atividades precárias e malremuneradas no setor informal […] e são proprietárias de apenas 18% das empresas”. Em relação à violência, a situação continua sombria: “Existe uma verdadeira vontade política, mas ainda é preciso fazer as mentalidades evoluírem e mostrar que a cultura não é imutável, que toda cultura é capaz de transformar suas tradições. Atualmente, viso às novas gerações”, diz Ingabire.
A situação do Afeganistão é completamente diferente. Sob a presidência de Hamid Karzai, violência doméstica, assassinatos e ataques com ácido estão em ascensão. Apesar disso, as mulheres não permanecem em silêncio: há porta-vozes, como Malalai Joya, eleita deputada em 2005 aos 27 anos – o que fez dela a representante mais jovem do Parlamento.
Joya passou uma parte da infância e da juventude em um campo de refugiados no Paquistão, mas depois pôde usufruir de uma boa educação e aprendeu inglês. Durante o governo dos talibãs, retornou à sua cidade natal, em Farah. Ocupou-se de um posto de saúde e da organização de cursos de alfabetização clandestinos para mulheres. Além disso, como observa a socióloga Carol Mann, “desde o começo de sua carreira política, ela provoca a fúria de seus colegas parlamentares ao criticar constantemente seu passado de chefes de guerra e suas atividades vinculadas ao tráfico de drogas e à militância islâmica incondicional. Incansável, ela também denuncia as políticas de Estado que violam os direitos humanos, em particular os das mulheres”.
Joya tem como principais inimigos os partidos reacionários e os fundamentalistas religiosos. Escapou de várias tentativas de assassinato e, em Cabul, foi agredida por parlamentares. “Eles podem me matar, mas não podem matar a voz das mulheres afegãs. Não estou sozinha”, declarou em 2007. Mulheres de burca, erguendo cartazes, manifestaram-lhe apoio em Farah, Jalalabad e Cabul. Em seguida, foi excluída do Parlamento após uma entrevista televisiva em que comparou a assembleia afegã a um zoológico.
luta por igualdade
Desde que o presidente Karzai apresentou sua política de alianças às potências ocidentais, no âmbito da Conferência de Londres, em janeiro de 2010, Shoukria Haida, presidente da Negar, uma das mais importantes associações de mulheres do país, teme um retorno dos talibãs ao poder. Em junho, o presidente reuniu 1.600 representantes de tribos e da sociedade civil em uma Loya Jirga (“grande assembleia”). Haida tinha receio de que o princípio de igualdade entre homens e mulheres, pelo qual havia lutado durante dois anos depois da queda dos talibãs, fosse suprimido da Constituição. Os textos fundamentais não foram modificados, mas de acordo com o Human Rights Watch, “o governo afegão e seus apoiadores internacionais não levaram em conta a necessidade de proteger as mulheres nos programas de reintegração dos combatentes insurgentes e se omitiram em garantir a inclusão de seus direitos nas potenciais negociações com os talibãs”.
A Índia é outro caso. O Estado indiano adotou o princípio da igualdade entre os sexos e integrou o conceito de gênero. De acordo com a análise de Urvashi Butalia, que mantém uma editora feminista em Nova Déli há mais de 20 anos, “hoje em dia, as indianas se beneficiam de excelentes políticas públicas. Nos planos quinquenais, elas têm um lugar específico. Recentemente, para ajudar os mais desfavorecidos e, em especial, as mulheres, o Estado indiano criou um salário mínimo diário para os trabalhos de interesse comum, como a manutenção das vias ou a limpeza das ruas”. Também foi promulgada, em 2005, uma lei contra as violências domésticas, “uma das melhores do mundo”, segundo a editora.
A Carta protege as mulheres não apenas da violência de seu marido ou de seus filhos, mas também dos membros da família de seu cônjuge, com os quais ela convive. No entanto, o dramático fenômeno das dowery deaths (“mortes por dote insuficiente”) ainda não foi controlado. De acordo com estimativas não oficiais, a cada ano cerca de 25.000 mulheres são assassinadas porque suas famílias não podem satisfazer as incessantes demandas da família do marido. Embora proibida desde 1961, a prática do dote voltou com mais força no fim dos anos 1980. “Atualmente, em todas as castas e classes sociais pratica-se o dote: deputados, industriais, jornalistas… Malvisto nos anos de 1970, o dote se tornou um símbolo ostentatório de riqueza e poder. Para os mais modestos, é o meio mais rápido de ter acesso ao consumo, atividade fundamental do sistema econômico e social da Índia moderna. A mulher indiana tornou-se um objeto destinado a permitir o acesso a outros objetos. É isso o que mais a fragiliza”, explica o pesquisador Max-Jean Zins.
Assassinatos
Além disso, na Índia, o número de homens supera em 40 milhões o de mulheres. Isso se deve principalmente à prática muito frequente do feticídio (eliminação de fetos do sexo feminino identificados por ecografia), mas também a uma forma de negligência em relação às meninas, que são menos cuidadas que seus irmãos e têm expectativa de vida menor.
No plano político, por outro lado, as mulheres indianas são relativamente poderosas. A maior democracia do mundo instaurou, em 1992, cotas nas eleições municipais. “Isso proporcionou mudanças profundas em escala local. No entanto, depois deste sucesso, os políticos se recusam a implantar um sistema similar para as eleições legislativas”, revela Butalia.
Nos países do Sul, que em sua maioria foram colônias ou protetorados, as pioneiras do feminismo moderno são oriundas, como no Ocidente, dos meios marxistas. Foi em oposição ao colonialismo, através das lutas pela independência, que elas afirmaram sua militância. Ao evocar o caso das combatentes indianas, Martine van Woerkens explica: “Elas tinham uma concepção visionária da nação futura, associando intimamente a autonomia política e a emancipação das mulheres”. No Egito, nos anos 1920, Huda Sharawi fundou a União Feminista Egípcia e se engajou na luta nacionalista. Em 1929, na estação de trem do Cairo, ela provocou escândalo ao descer do vagão sem véu. O mesmo gesto foi retomado alguns meses mais tarde por um grande número de egípcias durante uma manifestação contra o mandato britânico.
No Império das Índias britânicas, foi Kamaladevi Chattopadhyay quem encarnou essa dupla militância feminista e nacionalista. “Membro da aristocracia bramânica, rica e erudita, aderiu à causa nacionalista e reformista e esteve ao lado de Gandhi e Nehru nas lutas que precederam e sucederam a independência”, relata van Woerkens. Foi ela quem convenceu Gandhi a autorizar as mulheres a se juntar aos homens na Marcha do Sal, uma mobilização pacífica espalhada por todo o país contra o poder britânico.
Na Ásia, no Magreb e no resto da África, essas primeiras correntes feministas nascidas das lutas nacionalistas se caracterizaram por valores laicos e universais. As mulheres eram incitadas a ocupar universidades, empresas, instituições e organizações políticas. Mas um domínio permanecia então quase ignorado: a família. Nos países muçulmanos, “foram as militantes islâmicas que, no fim do século XX, assumiram essa tarefa”, segundo Margot Badran, pesquisadora do Centro para a Compreensão entre Muçulmanos e Cristãos do príncipe saudita Al Walid bin Talal, da Universidade de Georgetown, nos EUA.
Feminismo muçulmano
Surgida nos anos 1980 e forjada a partir da experiência iraniana, essa forma religiosa do feminismo é, até hoje, bastante controvertida. Os mais ardentes defensores da laicidade denunciam uma manipulação da luta das mulheres em benefício do islamismo político fundamentalista. No entanto, explica Badran, “o feminismo muçulmano está no centro de uma transformação que tenta emergir do interior do islamismo. Transformação, e não reforma, pois não se trata de corrigir as ideias e os costumes patriarcais que nele se infiltraram, mas de buscar nas profundezas do Corão sua mensagem de igualdade de gêneros e de justiça social […], para transformar, através de uma mudança radical, aquilo que por muito tempo nos fizeram crer que era o islamismo”. Ao se beneficiar das conquistas das lutas feministas precedentes, o movimento inicialmente surgiu na metade dos anos 1980, quando as mulheres das classes médias tiveram acesso ao ensino superior e deixaram seu lar para trabalhar. As primeiras reflexões sobre a divisão do papel de chefe de família apareceram nesse momento. Ao mesmo tempo, o conceito de gênero, forjado nos EUA, foi retomado por teólogos muçulmanos para interrogar os textos sagrados.
Por volta de 2005, as “militantes letradas”, como as chamou Badran, reafirmaram sua independência de pensamento ao tentar desvincular as ações e o direito muçulmanos do sagrado, mostrando que são construções humanas e históricas sobre as quais é possível agir. Começaram a pôr em prática tais ideias através da constituição de redes transnacionais. Badran constata, no seio da cultura muçulmana, uma convergência entre feminismos laicos e islâmicos que “se explica, antes de mais nada, pela coincidência de objetivos: livrar o islamismo da dominação masculina e concretizar a aspiração a uma religião igualitária, em particular no âmbito familiar”.
Descriminalização do aborto
No Marrocos, a reforma do código da família – Mudawana –, realizada em 2004, não teria sido possível sem tal aliança: “A reforma foi o resultado de 20 anos de debates entre o poder político, as feministas liberais e os muçulmanos, debates finalizados por Mohammed VI em 2003, através de uma mediação que levou em conta as reivindicações de todos os grupos”, acrescenta Badran. Esse avanço dos direitos da mulher na esfera familiar foi obtido graças à convergência da antiga militância feminista iniciada por associações laicas, dos aportes intelectuais das feministas islâmicas e, enfim, da vontade do jovem rei de se apropriar dessa questão como forma de modernizar a sociedade marroquina e barrar a radicalização do islamismo, sobretudo após os atentados de 16 de maio de 2003 em Casablanca.
O mesmo processo poderia ocorrer com a questão do aborto. “Trata-se de um tema que está começando a se discutir publicamente. Em nome da dignidade da mulher defendida pelo islamismo, o aborto poderia ser entendido em alguns casos como a única solução, o que justificaria sua legislação”, sublinha a pesquisadora Souad Eddouada. Na península arábica, também foi uma aliança entre laicos e religiosos que permitiu a obtenção do direito ao voto para as mulheres no Barein em 2002 e no Kwait em 2005.
Camille Sarret é jornalista.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil