artigos Publicado em 1 de outubro de 2010

Cooperação internacional e feminismo

Por: Hilary Burger

Chico de Assis, atual diretor da Abong Regional Sul, observou, durante o Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, que as ONGs brasileiras passaram várias décadas no berço esplêndido da cooperação internacional: com um bom projeto e um bom lobby, até recentemente o financiamento era quase garantido¹. Entretanto, atualmente, várias agências estão saindo do Brasil e outras têm reorientado as suas prioridades de acordo com redefinições internas e tendências externas.
O relatório “Onde está o dinheiro: avaliando os recursos e o papel dos doadores na promoção dos direitos da mulher e apoio a organizações feministas”, publicado em outubro de 2005 pela Awid (Association for Women´s Rights in Development)² relata importantes mudanças no cenário da cooperação internacional e das organizações feministas³. O relatório da Awid foi construído após 82 entrevistas com representantes de organizações feministas e um levantamento realizado pela internet do qual participaram 400 organizações de mulheres. Além disso, ao longo do ano 2005, a Awid realizou três seminários internacionais para aprofundar a discussão em Nova Iorque, Porto Alegre e na Cidade do México, com representantes de organizações da cooperação e de entidades de mulheres.
As informações levantadas refletem o panorama um tanto preocupante para as organizações feministas e com o qual muitos já estamos familiarizados. Existe também entre as entrevistadas a clara consciência de que a cooperação – seja nacional ou internacional – envolve relações de poder das quais precisamos estar conscientes na negociação e no acesso ao financiamento. No artigo, também há lições relativas às práticas e ações concretas que podem ser aprendidas para uma maior aproximação com as agências financiadoras e com os seus representantes.
Paralelo às tendências nas várias correntes da cooperação4, as últimas décadas experimentaram o aprofundamento do neoliberalismo nos países do Sul. As políticas de redução do Estado diminuíram a capacidade dos governos de garantir a proteção dos direitos, oferecer serviços e (re)distribuir recursos. Em resposta, houve uma crescente tendência na cooperação multilateral e bilateral a priorizar a erradicação da pobreza, através do financiamento direcionado à assistência direta. Em vez de responder às causas da pobreza, essas formas da cooperação tendem a interpretar a pobreza como a falta de serviços básicos.
É importante salientar que não existe uma fórmula única para garantir a sustentabilidade das organizações e dos movimentos feministas. Porém um melhor conhecimento da arquitetura da cooperação e do seu caráter político é imprescindível. Nesse sentido, a Awid direcionou a pesquisa visando ampliar o total de recursos, destacando o fato de nenhuma entidade ter se beneficiado do levantamento que foi realizado. A partir da perspectiva brasileira, a pesquisa levanta importantes questões no que diz respeito às características das ONGs feministas e dos movimentos, fóruns e outras articulações que, apesar de ocupar espaços centrais na luta feminista, refletem formatos variados. A agilidade que caracteriza algumas redes e movimentos, por exemplo, implica necessidades diferentes daquelas das organizações feministas que dependem de uma infra-estrutura para apoiar a pesquisa, o ativismo, o advocacy e a formação.
Por outro lado, o relatório da Awid revela importantes diferenças no acesso aos recursos entre as organizações do campo dos direitos humanos no âmbito internacional. Para melhor aproximar-nos do cenário da cooperação, é necessário citar alguns dados.
Algumas ONGs com sede nos Estados Unidos, tais como Amnesty International, funcionam com grandes orçamentos em relação à maioria das ONGs e redes feministas sediadas no Sul. É também interessante conhecer a fonte desses recursos: em 2003, o orçamento global da Greenpeace era de US$ 203 milhões (a grande parte arrecadada de pessoas físicas, das quais 60% eram mulheres); em 2004, o orçamento da Amnesty International era de US$234 milhões (90% de pessoas físicas, das quais 60% eram mulheres)5. Mais do que a metade das organizações que participaram do levantamento responderam que é mais difícil captar recursos hoje do que há dez anos. Além disso, muitas constataram que é cada vez mais difícil arcar com as despesas operacionais.
Existe consenso no fato de que, nos últimos anos, houve um aumento no financiamento para projetos com uma perspectiva de curto prazo e uma diminuição ao apoio institucional, gerando um grande desafio para a sustentabilidade operacional. Finalmente, embora o financiamento para programas de gênero e HIV/aids seja relativamente acessível, é mais difícil levantar recursos para direitos reprodutivos, direitos civis, sexuais e políticos e para ações em saúde fora do campo de HIV/aids.
Na América Latina e no Caribe houve um crescimento no apoio às organizações de base, grupos de mulheres rurais e mulheres sindicalizadas, antes e imediatamente depois da Conferência de Beijing (1995). Essa disponibilidade de recursos possibilitou a criação de novas organizações de mulheres. Mais recentemente, houve um aumento na concentração de fundos para temas específicos como educação. Além disso, os financiadores privados, bem como os públicos, cobram resultados concretos a curto prazo para projetos relacionados a gênero, o que, às vezes, representa uma contradição para entidades e movimentos dedicados a processos de transformação. Em parte, isso reflete as exigências dentro das próprias agências de cooperação para demonstrar cada vez mais eficiência no uso dos recursos. Especificamente, a pesquisa da AWID revelou uma crescente dificuldade para custear as despesas operacionais e os salários das organizações na América Latina e o Caribe. No âmbito regional, além do aumento de projetos orientados à assistência direta há uma tendência à terceirização dos serviços públicos entre o setor não governamental.
Uma análise das tendências da cooperação por setor revela importantes aspectos no que diz respeito ao campo feminista na América Latina. Em relação à cooperação bilateral e multilateral, há uma clara tendência de apoio a projetos de assistência direta, fundamentado em políticas econômicas promovidas pelas agências bilaterais, multilaterais e os governos nacionais. Em outros casos, os financiamentos são parcelados entre ONGs através de licitações, o que, efetivamente, cria uma terceirização de serviços, com a conseqüente desresponsabilização do estado. Como resultado, muitas organizações enfrentam conflitos entre a necessidade de sustentar as suas atividades e a preservação da sua missão central feminista. Há, porém, alguns países onde as agências de cooperação têm demonstrado um claro compromisso com o movimento feminista, entre elas Nzaid, Norad, Danida e Sida.
Entretanto, há uma corrente claramente conservadora na política de cooperação de alguns governos, destacando-se o caso dos Estados Unidos. O Global Gag Rule, decretado pelo presidente Bush, proíbe o apoio no exterior a qualquer programa que pratique o aborto ou que ofereça encaminhamento, orientação ou mobilização política a favor do aborto. Segundo pesquisa realizada pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), esta medida, que afeta até países onde o aborto é legal, atinge diretamente a saúde e a sobrevivência das mulheres pobres. A polêmica alcançou dimensões significativas no Brasil na recente negativa do Ministério da Saúde ao repasse de fundos da Usaid6 para o programa de HIV/aids devido a uma cláusula que exige que as entidades receptoras renunciem qualquer apoio à prostituição7.
As fundações públicas e ONGs internacionais (as chamadas INGOs, em inglês) são essencialmente organizações sem fins lucrativos que arrecadam fundos de pessoas físicas, agências semi-governamentais, fundações privadas e outras fundações públicas. Um fator importante é que essas fundações não possuem fundos permanentes, o endowment que caracteriza algumas fundações privadas norteamericanas, tais como a Fundação Ford e a Fundação W.K. Kellogg. Muitas das INGOs foram fundadas em resposta a situações específicas de emergência, como no caso do grupo de entidades que surgiram após a II Guerra Mundial e depois assumiram a forma de agências internacionais de cooperação.
Em alguns casos como o da Oxfam, as INGOs estabelecem representações nos países do Sul, além de realizarem ações de incidência, tanto com os seus governos quanto com organismos internacionais (por exemplo, a União Européia ou as Nações Unidas). Nos últimos anos, muitas agências adotaram uma perspectiva de direitos humanos, apesar de que, em algumas delas, o processo tem sido pouco aprofundado. Isso está evidente no caso da adoção de igualdade de gênero como tema transversal, diluindo, efetivamente, a sua importância dentro da cooperação88. Em outros casos, as INGOs são importantes defensoras das organizações feministas: em 2004, por exemplo, a agência holandesa Hivos apoiou as organizações de mulheres com mais de US$10 milhões.
Além da aparente diminuição do fluxo dos recursos, muitas organizações na América Latina e no Caribe citaram a pressão das agências para demonstrar resultados de curto prazo em projetos relacionados a gênero. Depoimentos das próprias agências revelam uma demanda institucional para que sejam mais eficientes no uso de recursos e para que justifiquem a solicitação e a distribuição dos fundos. Apesar das suas virtudes, a ênfase na avaliação pode criar uma contradição para o próprio processo feminista quando se sobrepõe o tecnicismo sem a compreensão do tempo necessário para transformar as relações de poder dentro de sociedades extremamente desigualitárias.
Quais são os desafios que enfrentam as fundações públicas e INGOs? Muitas experimentam pressão interna para mobilizar recursos e conformar-se com os desejos de doadores pessoas físicas (particulares), uma fonte significativa de doações. Como consequência, o diálogo com os parceiros sofre por causa da demanda interna das próprias agências. No caso de agências de origem religiosa, podem haver sérias limitações em termos de apoio à agenda feminista, sobretudo quando o assunto parece muito radical ou .político para o público doador.
Mais recentemente, surgiu uma certa contradição entre as INGOs que realizam campanhas de incidência (advocacy) e as ONGs locais. Algumas agências recrutam profissionais nos países do Sul, efetivamente esvaziando as organizações do seu talento local, por meio de salários mais atrativos e outros benefícios. Em outras instâncias, as INGOs canalizam uma quantidade relativamente maior de recursos para ONGs no Norte, efetivando uma prática de paternalismo em relação às organizações menores do Sul, que não dispõem dos mesmos contatos ou poder de negociação. No sentido propositivo, há uma necessidade cada vez maior de promover diálogos entre as organizações de mulheres e as INGOs, particularmente as que se posicionam a favor da igualdade de gênero e da defesa dos direitos humanos.
As fundações privadas têm crescido significativamente no hemisfério Norte. Nos Estados Unidos, elas são favorecidas por uma estrutura jurídica e legal que exige a doação de 5% dos recursos totais por ano. Embora o número de fundações privadas tenha crescido, a grande maioria das doações de pessoas físicas tende a favorecer a caridade. Há, portanto, uma necessidade de conscientização contínua dos doadores visando uma perspectiva de justiça e transformação social. Nesse sentido, as experiências das organizações e movimentos feministas são muito significativas. A organização de várias redes de .afinidade. nos últimos anos tem funcionado no sentido de promover um organizações e movimentos feministas são muito significativas. A organização de várias redes de .afinidade. nos últimos anos tem funcionado no sentido de promover um maior compromisso com a cooperação internacional. Apesar do crescimento do número e tamanho das fundações privadas, na maioria dos casos, as decisões permanecem nas mãos de um pequeno e poderoso conselho diretor. Isso fica evidente na experiência de algumas fundações que estão sujeitas à vontade de doadores específicos na definição de áreas temáticas. Nesse sentido, os aliados atuais e potenciais do movimento feminista são fundamentais enquanto indivíduos que defendam a causa das mulheres, e que podem ser cruciais para a mobilização de doadores. As organizações entrevistadas demonstraram unanimidade quanto a importância dos fundos de mulheres como fonte de financiamento. Entretanto, essa percepção não revela uma clara desigualdade no acesso a recursos. O total dos recursos dos fundos de mulheres, em 2004, era de US$24 milhões, dos quais, aproximadamente, US$ 15 milhões foram de doações. Deparamo-nos com essa diferença em relação ao total de doações das fundações norte-americanas em 2003: US$38,5 bilhões, dos quais aproximadamente 8% (ou US$3 bilhões) foram investidos no exterior10.
O relatório da AWID revela também a significativa infraestrutura de mobilização de que dispõem as grandes INGOs e ONGs, além de um público cativo e informado. Isso inclui uma equipe grande para administrar uma imensa mala direta voltada à solicitação de doações, e profissionais especializados para levantar doações de corporações, fundações e para o relacionamento com doadores de grande porte. O conhecimento do inglês, o acesso e os contatos pessoais e profissionais revelam um claro desequilíbrio no acesso ao financiamento. No entanto, isso não reduz a possibilidade e a importância de iniciativas de intercâmbio com fundos de mulheres no Norte que possuem experiências bem sucedidas na construção de sistemas de arrecadação, tais como o Global Fund for Women.
Por outro lado, os fundos de mulheres relatam um crescimento significativo no número de solicitações e, ao mesmo tempo, a necessidade de mobilizar maior quantidade de recursos. Portanto, as doações desses fundos tendem a ser relativamente limitadas e direcionadas a grupos com orçamentos de menos de US$100.000. Muitos dos fundos de mulheres priorizam o apoio institucional. Entretanto, nem todos compartilham o mesmo entendimento dos princípios do feminismo, dentro de uma perspectiva de direitos humanos. Na ausência de um consenso, alguns fundos se aproximam mais das agências com práticas assistencialistas do que da luta feminista.
Da experiência recente do Brasil, especificamente na relação entre sociedade civil e o governo Lula, surge uma situação talvez inédita: o fato de ter aliados dentro do governo pode significar um maior acesso aos recursos públicos. Contudo, o dinheiro não é sempre tão desejável quando traz consequências negativas que podem limitar a capacidade de exercer a crítica e o controle social. Por outro lado, as sociedades latino-americanas ainda não dispõem de uma estrutura tributária e jurídica que favoreça a arrecadação em massa da sociedade civil, como também possuem uma trajetória muito diferente daquela do Norte em relação a imagem da filantropia.
Quais são as lições tiradas desta pesquisa? Muitas das entrevistadas expressaram o desejo de obter mais conhecimento no campo da mobilização. É preciso que haja mais ousadia na procura de recursos e talvez um enfrentamento mais direto na relação com o dinheiro, estando sempre conscientes das múltiplas relações de poder presentes nela. Finalmente, uma maior aproximação entre as organizações do Norte e Sul, que permita uma troca de experiências, poderia gerar resultados positivos em termos do fortalecimento das ações orientadas à ampliação dos recursos disponíveis para o movimento.
Para mais informação sobre a Awid, o site é http://www.awid.org/.

Texto publicado originalmente na página www.cidadania.org.br, em 22 de março de 2006, e gentilmente cedido pela autora ao Grupo Transas do Corpo.
Hilary Burger é formada em economia com doutorado em História da América Latina. Desde 2000 trabalha nas áreas de sustentabilidade e planejamento com organizações não-governamentais que atuam no campo de políticas públicas nos Estados Unidos e no Brasil.
1. Ética e Captação de Recursos Privados. Oficina organizada por CICLO – Assessoria para o Desenvolvimento e Cordaid. V Fórum Social Mundial, Porto Alegre . Brasil . 28 de janeiro de 2005.
2. Where is the Money for Women´s Rights . Assessing Resources and the Role of Donors in the Promotion of Women´s Rights and the Support of Women´s Rights Organizations. Association for Women´s Rights in Development (AWID) Final Report, October 2005 (www.awid.org).
3. O artigo em inglês refere-se ao apoio a organizações de promoção dos direitos da mulher. Aqui o termo feminista está sendo usado, com o entendimento que as organizações feministas assumen como compromisso central a promoção dos direitos da mulher.
4. Para uma análise da cooperação européia ver: Kees Biekart, Políticas de las ONGs europeas para América Latina: Tendencias y perspectivas recientes, ICCO/ALOP, abril de 2005 (www.icco.nl).
5. Reconhecendo as diferenças em termos de escala e abrangência, citamos alguns orçamentos em termos comparativos: em 2004 a Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe(REPEM) tinha um orçamento de US$250.000, o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) de US$1.1 milhões, AWID de US$1.2 milhões e o Centro de la Mujer Peruana Flora Tristán, US$1.6 milhões.
6. Agência de cooperação internacional do governo dos Estados Unidos.
7. Mais informações no site do Center for Health and Gender Equity: www.genderhealth.org.
8. O artigo relata várias experiências do chamado mainstreaming, basicamente uma tentativa de transversalidade, sem resultados claros.
9. São exemplos: Funders Network on Population, Reproductive Health and Rights (www.fundersnet.org);Women´s Funding Network (www.wfnet.org); Funders for Gay and Lesbian Issues (www.lgbtfunders.org/lgbtfunders); International Human Rights Funders Group (www.hrfunders.org); Environmental Grantmakers Association (www.ega.org).
10. O cálculo do total de doações das fundações, realizado pelo Foundation Center, reflete somente as que foram efetuadas numa quantia acima dos US$ 10.000 (www.fdncenter.org).

30anos
Grupo Transas do Corpo
Ações educativas em gênero,
saúde e sexualidade.