artigos Publicado em 1 de outubro de 2010
Maternidade: Reprodução deve ser opção e criação
Ser mãe é padecer no paraíso. Coração de mãe sempre cabe mais um. Coração de mãe não se engana. Mãe é tudo igual, só muda de endereço. Mãe é mãe. A sentença de igualdade é o lugar lógico de excelência, portanto diz tudo sobre os objetos que iguala. Se mãe é mãe, então nada há mais a dizer sobre ‘mãe’?
Há ainda tudo. Todas nós mulheres sabemos: ser mãe é a primeira e mais sólida opção de acesso à aceitabilidade que uma mulher pode ter. A obrigatoriedade simbólica da reprodução é a face mais perversa da opressão das mulheres. O cuidado das crianças se confunde com a geração das crianças, e a maternidade se torna a instituição que mais oprime as mulheres. Devemos ser mães, e boas mães, seja lá o que isso for. O mito da mãe feliz, realizada e completa pela relação com as crianças, é dolorosamente oprimente e interfere diretamente nas decisões das mulheres sobre ter ou não ter filhas/os.
Desde a década de 60, nós feministas dizemos enfaticamente não à obrigatoriedade da maternidade, mas o mito da mãe abnegadamente feliz paira sobre nossas cabeças e nossas práticas. Estamos sempre lutando pelo atendimento humanizado ao aborto inseguro e pelo fim da mortalidade materna, mas não há nada mais mítico, e simbolicamente positivo, do que a figura da mãe que morre, passa fome, adoece, sofre e se pune pela/o filha/o. O sacrifício é o mote da maternidade, e ele é recompensado através de capital simbólico inesgotável. A matrona, com suas crias dependentes e felizes, ainda é um modelo aceito e valorizado de amor e afeto desinteressado. No caso do aborto, ficamos diante do horror da negação do mito: dizer não à maternidade através do aborto é o ato de dizer não ao sacrifício e não ao capital simbólico da recompensa. A culpa diante do não sacrifício ainda é um dado que precisamos discutir mais em se tratando de aborto provocado.
Defendemos que a maternidade deve ser voluntária, e para isso as mulheres devem ter acesso à informação, a métodos contraceptivos e, conseqüentemente, ao aborto seguro. Mas garantir o direito de ter ou não ter filhos não é suficiente. É preciso defender e exercer o direito a modos diversos de se relacionar com filhos/as, se for essa a decisão. O que oprime não é apenas a obrigatoriedade da reprodução; o sacrifício e a dependência como modelos únicos para maternidade oprimem tanto quanto e reforçam a opressão da reprodução obrigatória.
Não à maternidade compulsória! Não também ao modelo único de maternidade! Mãe não é mãe; mãe não é tudo igual. A maternidade pode e deve ser também um lugar de criação de relações igualitárias, de reinvenções de práticas de gênero no campo da reprodução e do cuidado, não apenas incluindo os homens no exercício do cuidado primário, mas sim, e talvez principalmente, reinventando as formas como nós mulheres nos relacionamos com nossas crianças. É preciso rejeitar as recompensas simbólicas do sacrifício maternal, e aceitar que as/os filhas/os não nos pertencem, não são nossas âncoras afetivas ou nossas provas de boa conduta social.
Se assim desejarem, que as mulheres possam dizer: eu quero ser mãe, mas não quero me sacrificar pelas minhas crianças; eu quero ser mãe, mas não quero definir minha vida a partir disso; eu quero ser mãe, mas não quero ser responsável pelas atitudes das minhas crianças, numa relação de dependência de afetos e práticas; eu quero ser mãe, mas não quero que todo o meu tempo livre seja para essa relação maternal; eu quero ser mãe, mas quero poder criar a relação com minhas crianças todos os dias, nos termos da revolução que o feminismo defende.
Por: Joana Plaza Pinto
Educadora e pesquisadora do Grupo Transas do Corpo. Coordenadora da área de comunicação. Bolsista do Programa GRAL/FC.