artigos Publicado em 8 de julho de 2010

Você é fóbico/a? Uma conversa sobre democracia sexual

Fobia é um sentimento ou reação extrema de rejeição a algo que não gostamos, não concordamos, não aprovamos ou temos medo. Aliás, é o medo levado ao seu extremo, a aversão, o pânico. Pânico este que pode produzir atitudes igualmente extremas. Paulo Freire dizia que o medo é fruto da ignorância; que temos medo daquilo que não conhecemos. A fobia, aliás, é um medo doentio. Costumamos chamá-lo também de pavor. Podemos ter pavor do escuro, de altura, de avião, de ficar só no elevador, de multidão, de falar em público. Mas, também, podemos ser fóbicos/as em ralação a pessoas, comportamentos, maneiras de ser numa sociedade. Nesse caso, nossa fobia pode ser danosa a alguém ou a algum grupo, além de nós mesmos/as.

Muitos/as de nós não sabemos se somos fóbicos ou não, até que uma situação ou fato social nos revele. Piora um pouco as coisas o fato da fobia ter componentes inconscientes, quer dizer, não sabemos, muitas vezes, porque reagimos assim. Não faltam, entretanto, motivos e modelos que estimulam os comportamentos e sentimentos fóbicos. A homofobia, por exemplo, é característica marcante em programas humorísticos, conversas de bar, atitudes de professores/as em muitas escolas Brasil afora, só para ficar em três exemplos.

Poderíamos dizer que há muitas coisas que ignoramos porque não as vemos. Mas, não vemos porque o fenômeno não está aí para ser visto ou porque tememos vê-lo? A invisibilidade torna o fenômeno inexistente? Vamos falar francamente: você já viu duas mulheres se beijando na boca numa rua movimentada de sua cidade? Ou dois homens adultos fazendo carinho no parque onde você caminha? Um homem e uma mulher se beijando no cinema? Diga com sinceridade: o que você sentiu e como reagiu? Ficou excitado/a ou até feliz com a notícia de prisão, repressão violenta ou assassinato de gays/lésbicas? Desconfiou de uma pessoa apenas por sua aparência muito masculinizada ou afeminada em aparente desacordo com seu sexo? Com que frequência você ouve seus amigos e amigas gays falando abertamente de suas experiências amorosas e sexuais num ambiente não exclusivamente gay? Quantas histórias de amor entre homens e entre mulheres você conhece ou pelo menos já viu contadas? Você se pergunta com frequência porque algumas pessoas são homossexuais?

Aqui poderiam estar algumas pistas para nossa viagem ao mundo das pequenas e grandes intolerâncias, dos preconceitos e das fobias. Obviamente e infelizmente, a fobia não se aplica só à sexualidade, mas também à religião, à raça, ao estilo de vida, entre tantas outras. A homofobia é uma de suas manifestações, aliás bastante difundida, nem sempre conhecida e quase nunca objeto de punição. Acredito que os preconceitos e fobias em relação à homossexualidade estejam, em grande parte, associados à nossa ignorância sobre a história da sexualidade e da arte erótica; da recusa à experimentação de novas formas de vida (uma herança cristã de renúncia ao prazer e ao si mesmo); da rigidez das estilizações de gênero (homens devem ser assim, mulheres devem ser assado) que favorece uma heterossexualidade compulsória, e à falta de modelos democráticos radicais.

Não creio que nossa sociedade tenha conquistado uma tal liberdade de convivência e de costumes que aceite as formas de amar e de viver os corpos e os prazeres numa existência não heterossexual. Talvez estejamos caminhando. Concordo com Connel (1995) quando afirma que temos diversidade, mas não democracia sexual. A democracia sexual pressuporia arranjos socias diferentes do que este arremedo de democracia representativa, para utilizar suas próprias palavras, e implicaria numa vivência do político enriquecida com a diversidade das experiências individuais e suas singularidades. E mesmo que tenhamos a diversidade, a hieraquização das formas de viver os corpos e os prazeres aponta, em geral, para uma visão conservadora. O modelo heterossexual familiar é muito forte e está de tal modo arraigado ao nosso imaginário social que a invenção de novas formas de vida se torna praticamente inexistente. Então, mesmo quando pensamos em outras formas de sexualidade, tendemos a reproduzir este modelo e seus arranjos. Sua reprodução no mundo gay/lésbico não parece ser a regra, mas talvez lhe confira uma existência respeitável, mais valorizada socialmente, enquanto outras formas de expressão sexual continuam no limbo.

Através de um exercício[1] que venho fazendo em contextos diversos e com públicos aparentemente muito diferentes entre si, tenho tido acesso a resultados interessantes. Nos movimentos sociais, incluídos o feminismo, uma discussão de direitos sexuais costuma vir recheada de expressões politicamente corretas tais como “é preciso respeitar as diferenças”. Entretanto, uma primeira rodada a partir de fotos exibindo cenas explícitas de masturbação feminina, de pares lésbicos, de trios ou de dois homens se beijando na boca, surpreende pela quantidade de expressões tais como “chocante”, “esquisito”, “confuso”. Num segundo momento do exercício, peço às pessoas que hieraquizem as práticas ou estilos de vida apresentados tomando por base o gráfico ou círculo mágico de Gayle Rubin[2] Por mais que se queira aparentar uma aceitação ampla no plano intelectual, uma grande maioria ainda reproduz o esquema de Rubin. O exercício confere uma excelente oportunidade para discutirmos sobre o que siginifica ser “diferente”; ser diferente em relação a quê? Porque está claro que, quando adotamos o recurso da “diferença”, o estamos fazendo porque pressupomos um modelo, um padrão, como já mencionei anteriormente.

Não desconhecendo a dificuldade que é operar mudanças dentro de nós mesmas, acredito que exercícios como o que descrevi, são úteis, na medida em que permitem mostrar algumas das muitas formas de viver o corpo, os prazeres, o amor, para além do que vemos no nosso quase sempre estreito leque de experiências. De certo modo, ver nos ajuda a nos perguntar mais, a ter mais curiosidade, a rever nossos conceitos e preconceitos, e compartilhar as impressões no coletivo nos ajuda a tirar nossas próprias máscaras.

E o feminismo, até que ponto tem sido capaz de referendar suas aspirações progressistas numa atitude prática solidária? Charlotte Bunch assinala a contradição no interior do feminismo ao postular uma agenda de libertação da heterossexualidade compulsória, formulações teóricas que encorajam a visibilidade lésbica e a flagrante homofobia constatada, por exemplo, na dificuldade das lésbicas em pautar suas agendas em fóruns internacionais. O que poderíamos dizer sobre o feminismo brasileiro? Deixo a pergunta em aberto.

A Hierarquia Sexual: o círculo mágico versus os limites exteriores

 

O círculo mágico: A sexualidade boa, normal, natural, sagrada

 

 

Heterossexual

Em matrimônio

Monogâmica

Reprodutiva

Não comercial

Com um par

Em uma relação

Entre pessoas da mesma geração

Privada

Pudica

Somente corpos

Suave

ETC

 

Os limites exteriores: A sexualidade má, anormal, antinatural, maldita

 

 

Homossexual

Fora do matrimônio

Promíscua

Não procriadora

Comercial

Só ou em grupo

Esporádica

Intergeracional

Em público

Pornográfica

Com “sex toys”

Sadomasoquista

ETC

 

REFERÊNCIAS

 

BUNCH, Charlotte. 1996.  Foreword. In: ROSENBLOOM, Rachel. Unspoken Rules.

CONNEL, Robert. 1995. Democracy of pleasure – thoughts on the goals of radical politics. In: NICHOLSON, Linda and SEIDMAN, S. Social Post-modernisms: beyond identity politics. New York: Cambridge University Press.

GONÇALVES, Eliane. 1998.  Sexualidades. In: Educação sexual em contexto escolar. UFG: Goiânia. (dissertação de mestrado).

__________________. 1999.  Preconceitos, fobias e outras sombras que pairam sobre a educação sexual. In: RIBEIRO, M.(org.). O Prazer e o Pensar. São Paulo: Gente.

RUBIM, Gayle. 1989.  Reflexionando sobre el sexo: notas para una teoría radical de la sexualidad. In: VANCE, C. Placer y peligro, explorando la sexualidad femenina. México: Editorial Revolución.

[1] O exercício consiste em oferecer ao grupo uma sequência de fotos (em slides, transparências ou outra forma de apresentação) nas quais podem ser vistas diferentes práticas sexuais e estilos de vida. As pessoas anotam em uma folha suas primeiras reações e impressões que são, posteriormente, compartilhadas e discutidas no grupo.

[2] Rubin (1989) afirma que a sexualidade tem sua própria política de estratificação ou hierarquia sexual. Marcada pela tradição Judaico-Cristã, as nossas sociedades teriam segundo ela, uma resistência a encarar a sexualidade como fonte de prazer, necessitando se justificar através da procriação e do matrimônio. Apoiada nas dinâmicas das sociedades ocidentais industrializadas, Rubin faz uma compilação de práticas e estilos de vida sexuais que poderiam ser hierarquizados numa escala de valores morais. No centro teríamos, como valor máximo, o casal heterossexual monogâmico procriativo que, por sua condição nesta escala hierárquica, goza de reconhecimento social, respeitabilidade, etc. Na periferia estariam os homossexuais, as lésbicas, os travestis, os/as trabalhadores do sexo, subordinados a restrições em sua mobilidade física e social e sem reconhecimento ou respeitabilidade. Traçada uma linha divisória como fronteiriça entre um extremo e outro, encontraríamos aqueles grupos que vêm conquistando certo grau de respeitabilidade, tais como um casal gay vivendo discretamente em relação monogâmica.

30anos
Grupo Transas do Corpo
Ações educativas em gênero,
saúde e sexualidade.