filmes Publicado em 1 de fevereiro de 2017
Assuntos de meninas
Há muito tempo um filme não me deixava com uma sensação de embrulho no estômago e com um sentimento de déjà vu. Algo martela na minha cabeça: onde já havia visto ou escutado aquele tipo de história?
O filme a que me refiro é Lost and Delirious (em português, Assunto de Meninas). Mantive-me atenta ao meu desconforto e comecei a buscar as razões de tanto incômodo. A diretora do filme nos apresenta o desenrolar de histórias de meninas que estão estudando em um internato canadense, tendo como protagonistas centrais um trio de garotas, onde duas iniciam uma relação amorosa. O foco do filme é a repercussão interna e social deste envolvimento.
A obra apresenta-se com uma roupagem moderna ao ousar mostrar explicitamente a possibilidade do amor entre as duas adolescentes. No entanto, a pergunta que o filme coloca e faz ecoar na cabeça dos expectadores, do início ao fim, é por que aquelas garotas foram se relacionar com outras do mesmo sexo? E, obviamente, tenta trazer respostas e desfechos para este tipo de relação.
A narrativa desliza por um terreno onde informações vão ajudando a construir explicações para o comportamento destas “estranhas” meninas. O nome do filme já diz que são meninas “perdidas e delirantes”, vítimas de vicissitudes da vida, como o abandono, a morte e a indiferença dos pais. Destacando a ausência da mãe como fator desestruturante.
A diretora é pródiga em reeditar a teoria do trauma e da localização de eventos traumáticos da vida das meninas para justificar suas práticas afetivo-sexuais. A cultura do trauma é bastante conhecida por todas/os, especialmente para as pessoas que foram expostas aos discursos psicológicos. Dentro deste discurso enfatiza-se que experiências traumáticas seriam responsáveis pelo comportamento homossexual (especialmente o abuso sexual).
Este tipo de discurso situa o trauma como uma questão individual, deixando as pessoas como vítimas ou perpetuadoras do mesmo, não abordando a dimensão social dos traumas, que seriam as violências advindas do contexto de como os eventos históricos contribuíram para a existência da homofobia e do sexismo.
As dificuldades que uma das personagens sente em se permitir viver sua relação estão intimamente ligadas à forma como meninas e meninos são educados para se sentirem mal e tentar explicar e/ou nomear o que estão vivendo. A personagem responde adequadamente a esta lógica que exige explicações para formas diferentes de sentir. Capturada e vencida, ela tenta responder à família caindo na armadilha de que o desejo necessita de explicação e aceitação.
Por outro lado, a diretora apresenta a segunda personagem como aquela que desafia a ordem e as explicações. Ela enfrenta as adversidades e busca nos sentimentos a razão de existir. Só que o desfecho para a heroína que se rebela é sombrio.
O filme é ruim porque nele não há espaço para a construção de personagens e desfechos que não cumpram os clichês sociais e ainda acende o desejo de tornar pública a visão do trauma. Falar criticamente sobre as diversas teorias que envolvem a existência de amores entre meninas e meninos pode ser um caminho para que elas/es possam lidar com seus sentimentos e diferenciar o que é esperado que elas/es sintam do que realmente sentem.
Felizmente, a filmografia mundial vem apresentando produções com outras perspectivas sobre o tema, com menor abordagem da lógica do trauma e maior visibilidade para a celebração dos afetos e sentimentos contidos nas relações homossexuais.
FICHA TÉCNICA
Título original: Far From Heaven
País: EUA/França
Ano de Produção: 2002
Diretor: Todd Haynes
Trilha Sonora: Elmer Bernstein
Elenco: Julianne Moore, Dennis Quaid, Dennis
Haysbert, Patricia Clarkson, Viola Davis,
James Rebhorn, Bette Henritze
Roteiro: Todd Haynes
Duração: 107 minutos
Gênero: Drama
*Lenis Borges é Mestre em Gênero e Desenvolvimento (ISS/Holanda) e co-fundadora do Grupo Transas do Corpo.