noticias Publicado em 9 de junho de 2011
STF se prepara para julgar interrupção da gravidez de feto anencefálico
Uma das gestações mais longas do STF está para ter fim.
O ministro Marco Aurélio disponibilizou para julgamento a ADPF 54, que aguarda a bagatela de sete anos para ser analisada pelos ministros de nossa Corte Suprema.
Trata-se da autorização de interrupção da gravidez do feto anencefálico.
O processo se iniciou em 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizou ação no STF pretendendo unificar a interpretação judicial nos casos em que se descobre que o feto nascerá sem cérebro.
Houve concessão da liminar pelo ministro Marco Aurélio, mas a decisão foi cassada no mesmo ano, pela maioria do Plenário. Mais de vinte instituições foram ouvidas em audiência pública.
De 2004 para cá, a composição do STF se alterou, havendo nos meios jurídicos a expectativa do julgamento de procedência da ação: em outras palavras, que o tribunal repute como legal a autorização judicial para a interrupção da gravidez nestas hipóteses.
Na maioria dos casos, tal autorização já vem sendo concedida por juízes e tribunais estaduais, com base em dois bons argumentos.
O primeiro é que em se tratando de anencefalia, não há propriamente aborto. O aborto pressupõe expectativa de vida, o que não ocorre quando há ausência de cérebro. Fazendo um paralelismo com a lei que autoriza a doação de órgãos, o diagnóstico de morte encefálica já caracteriza legalmente a situação post mortem, exigida para a retirada dos tecidos.
Os juízes também tem se ancorado no princípio da dignidade humana. Seria uma ofensa à dignidade, exigir de uma mãe que suportasse por nove meses a gestação de um filho que nascerá sem cérebro e, portanto, sem vida. Tem-se entendido que o Estado não pode impor tal sofrimento à gestante.
De outro lado, há quem defenda a proibição da conduta pela ausência de regra no Código Penal que a autorize. Como se sabe, nossa lei criminaliza o aborto, punindo tanto o médico ou a parteira que o realizam, quanto a gestante que o autoriza, com apenas duas exceções: gestação resultado de violência sexual e aquela que põe em risco a vida da mulher.
Mas existe uma circunstância que milita em prol dos defensores da autorização judicial: o Código Penal de 1940 não podia estipular a legalidade desta interrupção, pois não era imaginável quando editado, que a medicina pudesse prever a má formação fetal com tamanha antecedência.
E para os que se aferram na letra fria da lei, ou no caso, da ausência dela, uma lição de recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que enfrentou a questão e autorizou a interrupção da gravidez: É a vida que faz o direito, não o direito que faz a vida.
A falta de uma norma específica, portanto, não poderia ser álibi para a não aplicação de um princípio tão fundamental quanto o da dignidade da pessoa humana. E a jurisprudência do STF cada vez mais se distancia dos primados do positivismo, inclusive para reconhecer que nem todo direito está contido na lei. Isto seria legalismo, não justiça.
A rigor, não se tratando propriamente de aborto, eis que o feto não tem perspectiva de vida diante da prenunciada ausência cerebral, nem mesmo a autorização judicial seria necessária.
Afinal, não cabe aos juízes criminais autorizar a prática de um ato legal. Todavia, a reticência dos médicos acabou por trazer a questão aos tribunais -por sorte, juízes das instâncias inferiores não estão demorando o mesmo tempo dos ministros para avaliarem tais casos.
O STF deve, sobretudo, fugir à tentação de se embrenhar na questão religiosa, resistindo à forte pressão das Igrejas quando assuntos como esses chegam às pautas, seja do Congresso, seja dos tribunais.
Sem desmerecer ou menoscabar os fundamentos e o direito dos religiosos de expô-los, certo é que os princípios morais tutelados pelos diversos credos só dizem respeito a seus próprios fiéis e, diante da centenária separação Igreja-Estado, não podem ser impostos ao conjunto dos cidadãos.
No âmbito político, a potência dos lobbies religiosos tem demonstrado força incomum.
Aparentemente, com o julgamento da união homoafetiva, o STF afastou os riscos de violação do Estado laico e nada indica que venha a ceder neste novo julgamento.
É ver pra crer.
Por Marcelo Semer, Blog Sem Juízo
Imagem: Palabra de Mujer