artigos Publicado em 6 de maio de 2011

Maternidade da caverna no século XXI

Maternidade da caverna no século XXI: eu não moro em Bedrock

Joana Coccarelli 

Virar mãe é ingressar na bolha do não dito. Goste a mulher ou não da experiência da gravidez, ela certamente viverá uma montanha (barriga?) de sensações que não se expressam em palavras. Nasce o bebê e lá se vão mais de dois anos até que ele comece a verbalizar-se de forma inteligível. Virar mãe é o esforço – às vezes, um simples dom – de operar com base em climas e tentativas. “Acho que é isso”, “É isso!”, “Não, não é”, “Vou tentar de novo”.

A via mais cruel dessa realidade é a da expectativa social, sempre tácita mas agressivamente vigilante e coerciva, principalmente em relação às mães que se reservam o direito de recusar a cartilha de especialistas e outras mães para “achar que é isso”, “tentar de novo” e, também, pensar nela própria. O senso comum, inconscientemente arraigado em todas as boas pessoas que nos cercam, repousa sobre a suposição freudiana da essência masoquista comum a toda mulher. Todos, em particular a grande maioria de mães, espera que novas mães enfrentem de bom grado e sem maiores choques os sacrifícios da maternidade. Na verdade, quanto mais sacrifício, melhor a mãe, e mais sortuda a criança. Não se adaptar às noites em claro, negociar anestesia durante o parto normal (ou mesmo eleger a cesariana de antemão), abrir mão do aleitamento ao seio e outros hábitos menores, como apelar para chupeta, contratar babá e preferir fraldas descartáveis às de pano são práticas hoje recebidas com reticências, narizes torcidos e sobrancelhas em pé em todos os círculos e níveis sociais – condenações veladas capazes de causar enorme insegurança às mães, principalmente as de primeira viagem.

Na contramão de um mundo cuja ordem do dia é a diversidade, vivemos a homogenia da maternidade naturalista, verde, de “volta às origens”, onde alternativas artificiais adotadas pela própria mãe para melhor se adaptar à estafante vida com o bebê são pessimamente vistas. O endeusamento de práticas como o parto normal à sangue frio (na Europa, a febre do parto em casa), amamentação exclusiva no peito, papinhas unicamente feitas em casa, cama compartilhada com os pais, horror a artifícios como chupetas e mamadeiras e a ressurreição das fraldas de pano levou a mãe do século XXI de volta para as cavernas, ignorando completamente o imenso choque que é passar de um ser humano autônomo para uma realidade Flinstones já no trabalho de parto. A transição de mulher para mãe sempre é pesada, mas não deveria ser esse pedregulho todo. Dizem que o compromisso é para com o bem-estar do bebê, mas se esquecem que a mãe continua sendo parte integrante do ser bebê por muitos meses, e seu mínimo bem-estar constitui em grande parte o do filho.

O inegável sexismo que acompanha o dogma naturalista fica ainda mais evidente quando mães em tempo integral se constrangem ao saber que outra mulher pretende, sim, voltar a trabalhar fora de casa. Ela não se constrange por ela própria dedicar indefinidamente todo seu tempo ao próprio filho (e a cozinhar papinhas, lavar centenas de fraldas de pano, etc), mas pela outra mãe, deixando subentendido que um tipo de abandono ou negligência está para acontecer. “O filho é visto como se não fosse um ser social ligado também ao pai, aos outros membros da família e da sociedade”, escreveu a filósofa Marcia Tiburi sobre o assunto.

É mais que evidente que há mulheres que se identificam genuinamente com tais métodos de maternidade; há nelas uma espécie de compreensão e complacência para com a dor e com a priorização da criança acima de qualquer coisa (mesmo que possivelmente a despeito dela própria e, conseqüentemente, de seu parceiro e vida profissional). O problema não é este. Existe todo tipo de gente, com todo tipo de preferência no mundo. O problema é a predominância brutal desse pequeno grupo sobre uma maioria esmagadora de mulheres que simplesmente não se encaixa nele. De modo que muitas delas o seguirão sob enorme risco de esvaziar o vínculo com o filho, já que não se sentem livres para buscar com ele um meio termo (uma mãe tranqüila é sinônimo de filho tranqüilo, já que houve separação de corpos mas não de afetos); muitas outras não agüentarão a barra mas mentirão, evitando a desaprovação geral; algumas chegarão a questionar a qualidade de seus sentimentos pela criança, uma vez que não fazem “nada certo”; e outras, como eu, serão vistas como mães rebeldes e insistirão que o método está sendo supervalorizado em detrimento do afeto; que o amor não está no mamilo de onde sai o leite, mas no coração que fica logo ali atrás, desmistificando a amamentação como única forma de criar vínculos afetivos “inestimáveis”. Forma não é afeto, embora possa vir a ser. Forma é essencialmente forma.

A noção absurda de que a mulher está inexoravelmente predestinada ao sofrimento está se confundindo com a idéia perigosa de “necessidade de sofrimento para a afirmação do ser mulher” – algo imoral no pós-feminismo. Sugiro que as militantes do parto em casa/ normal sem anestesia se alinhem completamente à ideologia passando a negar, também, medicamentos que aliviam cólicas, enxaquecas ou cirurgias invasivas mais sérias. Por que a dor é exclusividade da maternidade?

Temo que a tirania naturalista da maternidade esteja achatando uma das experiências mais multidimensionais que mães e filhos podem criar juntos. Dores excruciantes e sacrifícios sem limites estão roubando um espaço que também poderia conter muitos afetos únicos e contemplação de significados afirmativos – sem contar com a identidade da mulher que, passada a primeira infância do bebê, poderá revelar-se muito mais preciosa do que ela julgava quando dedicava-se ao filho e ao filho apenas.

Filho que, ao usufruir de práticas e atenções massivas e ininterruptas, corre grande risco de se tornar um pequeno egoísta, míni troglodita, Bambam e Pedrita do novo milênio, e não uma criança de fato mais saudável, adaptável, confiante e potencialmente feliz. Não seria essa a mais lamentável ironia da “maternidade volta às origens”?

Fonte da imagem:Obra “Maternidade, uma nova estação”, de Assis Costa, artista potiguar.
Acrílica sobre tela 40 x 70 cm

30anos
Grupo Transas do Corpo
Ações educativas em gênero,
saúde e sexualidade.