artigos Publicado em 1 de outubro de 2010

Uma conversa sobre a mídia

O diálogo com a mídia faz parte de uma articulação política bem-sucedida. Quando esse diálogo envolve temas polêmicos, como o aborto, o caminho muitas vezes é tortuoso e de enfrentamentos, mas nem por isso deixa de ser necessário. Para falar sobre isso, o Fazendo Gênero fez uma entrevista por e-mail com Angela Freitas, uma das sócio-fundadoras do Instituto Patrícia Galvão. Comunicadora social, Angela foi assessora do SOS Corpo, da AMB e da Cepia; entre 2000 e 2002 participou da equipe de coordenação da Campanha 28 de Setembro – Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe.

Fazendo Gênero – A atual onda conservadora afeta a discussão sobre o aborto na imprensa?
Angela Freitas – A imprensa reflete o que se passa na sociedade. Se há uma onda conservadora, com certeza esta tendência aparecerá na mídia de alguma maneira. Mas acho que não dá para afirmar que exista hoje uma discussão sobre o aborto na grande imprensa. Ou seja, não vejo uma discussão aprofundada sobre este tema seja na imprensa ou nas faculdades de medicina, ou em outros estabelecimentos de ensino, nem no âmbito governamental e tampouco no âmbito dos movimentos sociais. Quando este tema surge em alguma pauta, isto costuma acontecer de maneira velada, ou rodeado de temores, hipocrisia ou preconceito.

FG – As representantes dos movimentos feministas estão preparadas para discutir a questão do aborto com a sociedade brasileira?
AF – Acho que desde a visita do Papa, que aconteceu em 1997, o movimento feminista brasileiro deixou de discutir mais profundamente a questão do aborto. Naquela ocasião o tema estava quente. Um Projeto de Lei Federal, o PL 20 tinha entrado na pauta do Congresso Nacional e os debates estavam intensos, inclusive na mídia. De lá para cá, os grupos antiabortistas traçaram novas estratégias, inclusive de âmbito regional, abarcando os países da América Latina e Caribe. Acho que o movimento feminista, e os movimentos de mulheres em geral, que lutam pelo direito de decidir das mulheres e pelo estado laico, precisam se preparar muito, atualizando seus entendimentos e aprimorando os argumentos em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, para fazer frente a esta onda conservadora e para debater com diferentes setores da sociedade sobre esta questão.

FG – A recente polêmica da novela Mulheres Apaixonadas esquentou a discussão do tema aborto na mídia. Esse é um bom caminho para tornar essa questão mais popular?
AF – Não sei se a população está discutindo o tema da interrupção voluntária da gravidez de forma mais aberta por causa da novela. E também não disponho de uma avaliação sobre como este debate vem repercutindo na mídia. Se as pessoas estiverem debatendo sobre aborto por causa da novela, acho ótimo. Mas espero que não estejam influenciadas pela abordagem do autor, Manoel Carlos, que me parece um tanto irreal. Não é disto que estamos precisando.

FG – Você identifica veículos da mídia brasileira que estão mais ou menos comprometidos com a discussão do aborto?
AF – Há grandes veículos da imprensa escrita que têm feito um bom trabalho. A Folha de S.Paulo, por exemplo, tem publicado até mesmo editoriais favoráveis a uma visão do aborto como um tema da democracia. O JB, O Globo, têm seguido também esta trilha. A Veja publicou uma reportagem de capa corajosa. Algumas revistas femininas tocam o tema de maneira muito aberta. E a sociedade só tem a lucrar com tudo isto.

FG – A imprensa está preparada para falar sobre o aborto? Ela consegue transmitir com clareza a discussão do assunto à sociedade em geral?
AF – Não podemos generalizar. Falando da grande imprensa brasileira, e deixando à parte a imprensa sensacionalista ou religiosa, há veículos com todo o potencial para desempenhar este papel. O que talvez seja necessário fazer é um trabalho de preparação de jornalistas para enfrentar este desafio com mais competência. São poucas as jornalistas e jornalistas homens com reflexão sobre saúde sexual e reprodutiva e sobre direitos das mulheres como para transitar para uma nova era do debate sobre aborto na imprensa.

FG – Qual tem sido a contribuição do Instituto Patrícia Galvão na discussão sobre o aborto com a mídia?
AF – O Instituto Patrícia Galvão é uma ONG feminista especializada em comunicação e mídia. Fundada no final de 2002, seu primeiro projeto de atividades consistiu justamente em uma série de treinamentos, para lideranças do movimento de mulheres, a respeito de como falar sobre aborto na mídia. Foram três treinamentos para cerca de 25 mulheres cada um, contemplando as regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, onde são grandes os desafios a serem enfrentados para romper as barreiras do preconceito, do radicalismo conservador, e da desinformação por parte da mídia. Temos clareza de que estes treinamentos foram uma boa contribuição para reavivar a discussão sobre aborto junto às mulheres, deixando sementes para que outras atividades neste campo tomem lugar, sempre valorizando a boa atuação na mídia como elemento estratégico fundamental.

FG – Levar a discussão do aborto para o campo da saúde da mulher é o melhor caminho para buscar sua descriminalização?
AF – Levar a discussão do aborto para o campo da saúde pública e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres foi um caminho escolhido pelas feministas. Um caminho que trouxe conquistas importantes no âmbito das conferência da ONU. Nas Conferências do Cairo (1994) e de Beijing (1995) os países membros da ONU assinaram documentos nos quais se comprometem a encarar o abortamento provocado como questão de saúde pública. Se este caminho vai conduzir à descriminalização, só o tempo dirá.

Outros países já conquistaram a descriminalização, como França, Itália, Inglaterra, Holanda, Suíça, Guiana Inglesa. Nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado na década de 70. No entanto hoje, o governo fundamentalista de Bush faz de tudo para reverter esta conquista das mulheres. O mesmo tipo de pressão conservadora está ocorrendo nos países da América Latina e Caribe, numa estratégia muito bem articulada, sobretudo por parte da hierarquia da Igreja Católica. Até que ponto nossos governos vão se render a estas pressões? Ou, de forma mais otimista, até que ponto os argumentos desenvolvidos no marco da liberdade e do direito de decidir irão encontrar ressonância junto à opinião pública e no marco do desenvolvimento de sociedades democráticas? Este é o tempo que falta para a descriminalização do aborto.

30anos
Grupo Transas do Corpo
Ações educativas em gênero,
saúde e sexualidade.