noticias Publicado em 26 de julho de 2012

Uma mulher não deve vacilar

Por Vanessa Ferrari

É muito interessante a constatação de que às vezes tudo que você sabe sobre um tema não passa de uma seleta mal enjambrada, moldada a partir de fontes duvidosas e de pistas falsas. Quando entrei pela primeira vez na Penitenciária Feminina de Sant’Anna, na zona norte de São Paulo, todo o meu repertório a respeito da vida no cárcere vinha dos filmes de Hollywood e dos romances policiais. Sim, eu sei, é meio ridículo, mas às vezes (muitas vezes, sejamos sinceros) tudo que se tem é um repertório ridículo em que se amparar.

Eu achava, por exemplo, que a maior diferença entre mim e as garotas do clube de leitura era o fato de elas terem cometido algum tipo de crime e eu não. Hoje, quase um ano depois, parece que o abismo entre nós é de outra natureza. Embora eu não tenha cometido nenhum delito passível de pena, a minha natureza (aliás, a nossa natureza) diz que potencialmente eu poderia fazer o mesmo. Não há dúvida de que elas cruzaram uma linha importante e sem volta. Não há dúvida de que se eu tivesse feito o mesmo, minha vida teria tomado um rumo tão adverso que mal consigo vislumbrar. No entanto, o que me fez mudar de ideia foi uma descoberta que nada tem a ver com a curiosidade legítima mas um tanto mórbida a respeito dos crimes que elas cometeram. Uma vez presas e condenadas, a grande maioria das quase três mil mulheres encarceradas pagará não só com a privação à liberdade, mas também com a quebra total dos laços afetivos. Quem é mãe verá o filho ser criado pela avó ou por outro membro da família, e esses filhos quase nunca aparecem nas visitas. As mulheres casadas descobrirão que o amor marital tem pouca resistência às agruras da realidade, pois antes de o guarda dar duas voltas na tranca da cela os maridos terão desaparecido na poeira. A família, em um misto de vergonha, amor e ódio, escolherá a punição máxima, fazendo de conta que aquela pessoa nunca existiu.

Se para as mulheres tudo se reconfigura de modo sombrio diante desse novo status social, no presídio masculino o espírito do perdão e da resignação predomina. A mulher não só não abandona o marido como muitas vezes espera pacientemente que ele volte para casa depois de cumprir a pena. Quem é pai conforta-se ao saber que o filho está sob os cuidados de sua mulher. As mães dos presos fazem fila nos dias de visita. Até casamento eles arrumam na prisão, e contam seus crimes com orgulho, talvez até dourem a pílula edificando seus feitos. Elas sentem vergonha e amenizam o delito.

Ao ouvir pela primeira vez sobre essas diferenças, lembrei imediatamente de um verso de “Juventude transviada”. Nessa música, Luiz Melodia conta a história de uma mulher que vive entre lavar roupa na quebrada da soleira e nutrir sonhos de madrugada. A certa altura ele diz: “uma mulher não deve vacilar”.

Há quem diga que certos tipos de crime, por serem atos extremos, provocam também uma reação extrema. Ninguém perdoa esse tipo de vacilo. Mas essa seria mais uma ideia ridícula no rol das ideias ridículas. Se fosse assim, os homens também seriam igualmente penalizados por seus familiares, pelas mulheres que os amam. Também não vou arriscar teorias de gênero. A minha impressão é a mesma do Luiz Melodia: uma mulher não deve vacilar. Não deve vacilar dentro ou fora do cárcere; se morar próximo ao Equador ou nos confins do Ártico; se for muçulmana, judia ou cristã; se for rica ou pobre; se for mãe, irmã, esposa. Em qualquer momento, de dia ou de noite, ai da mulher que vacilar.

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Vanessa Ferrari é editora assistente da Penguin-Companhia e mediadora do clube de leitura na Penitenciária Feminina de Sant’Ana. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Fonte: http://www.blogdacompanhia.com.br/2012/07/uma-mulher-nao-deve-vacilar/

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